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Policarpo, o estrangeiro e o Natal

Policarpo Quaresma é o reflexo exacerbado do patriotismo, da preservação dos costumes brasileiros e da imutabilidade de tudo aquilo que acha correto. O personagem do romance do escritor Lima Barreto é um sonhador do fortalecimento da cultura nacional e totalmente averso ao “estrangeirismo” desmedido. O comportamento de Policarpo contrasta com a disruptividade que o movimento literário de Barreto traz à literatura brasileira, o pré-modernismo. Apesar das descrições do caráter de Quaresma mais se encaixarem nos muitos retrógrados que hoje em dia se intitulam “cidadãos de bem”, o personagem do livro é um homem bom, talvez com dificuldades ao lidar consigo próprio. Suas convicções, no entanto, lhe traem, com aquilo que mais acreditou, as pessoas.

Em uma das minhas andanças por aí, conversava com um colega sobre trivialidades, depois o papo descambou para o momento político-econômico, até começarmos a falar da famigerada Copa do Mundo. O prosear ia de vento em popa, até que uma palavra de três letrinhas me chamou atenção. “Rudiney, nisso eu discordo de você, não acredito que isso seja o principal no modelo que você propõe, but, é um ponto de vista. Qual sua outra ideia?”.
Confesso que não consegui processar uma réplica imediatamente, aquela palavrinha minúscula começou a bagunçar meus pensamentos da maneira mais disforme possível. “É, acho que sim.”, me dei por satisfeito.
Acredito que todos nós brasileiros já nos acostumamos com as palavras “aportuguesadas”, seja pela ida ao shopping, o envio do e-mail, ou fazendo o check-in. Alguns termos, mais do que rebuscamento, já foram incorporados ao nosso dialeto, é natural para nós. Há também situações em que não existe palavra ou expressão exata em nossa língua materna para o que está acontecendo. Como toda língua, o português também tem suas limitações, faz parte.
Já o but, ele mesmo, ainda engasga, é a espinha de peixe atravessada na garganta. Será que aquela era a melhor maneira do meu colega se expressar, na pressa por uma palavra que definisse da melhor maneira o que gostaria de dizer? Ainda creio que não, tinha termos muito mais simples... Será que foi involuntário? Não sei. Me contentei e agradeci por não ser Policarpo e não ter enlouquecido ao ouvir aquilo.

É compreensível alguém que está aprendendo uma nova língua ou mesmo já a domina, mostrar isso para alguém. Por vezes, é um grito velado de socorro, a falta de achar alguém para praticar. Geralmente não costuma ser atitude esnobe, a pessoa assume que o outro saberá a língua e taca na conversa palavras, frases, e às vezes até raras expressões estrangeiras.    
Policarpo Quaresma, no entanto, não entenderia. O homem que já tentou aplicar a sua volta alguns costumes indígenas por achar que aquilo era o mais rico de nossa cultura, enlouqueceria em 2017, a Era dos smartphones, likes e fake news. Não sairia de casa para não entrar em contato com o “american way of life”, nem escutaria os concertos que estão sendo transmitidos pela TV na noite de Natal: “Jingle bells, jingle bells, jingle all the way”. Porém, lá pelas dez da noite não poderia evitar que um tiozão seu, já bêbado, entrasse em sua casa gritando a plenos pulmões um estrondoso “Merry Christmas”, querendo mostrar pros familiares que sabe falar algo diferente do “pavê ou pácumê”. Isso já é tradição, não tem como mudar. Whatever.
  

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