Miranda não titubeia quando o despertador toca. Em um só movimento está sentado na cama colocando o relógio decênio que ganhou da esposa - ainda dormindo a seu lado - quando ficaram noivos. O rapaz de um metro e oitenta nunca demora a tomar coragem e ficar de pé para mais um dia de trabalho. O ofício, que fica a pouco mais de uma hora de sua casa, ainda lhe traz certa satisfação. Já é motorista de ônibus há vinte e um anos. Enfrenta a rotina das fechadas dos carros e ouve a melodia das buzinas de segunda a sábado. Não é daqueles reclamões do trânsito.
Eliel, que cultiva o amor pelas ferrovias assim como pelo bigode, também é responsável por carregar algumas centenas de pessoas pelos trilhos da capital paulista por cinco dias na semana. Ao contrário de Miranda, não gosta mais do que faz e só tolera a profissão pelo desejo da aposentadoria, já que não quer arriscar procurar um novo emprego com uma idade tão avançada como a sua. É hora de pensar no repouso, garante para a mulher todas as noites, enquanto com o dedo apontado para o teto, desenha o destino.
Plínio não demora tanto tempo para se deslocar para o trabalho e nem usa transporte público. Depois de surrar os dentes com a escova logo cedo, só tem o trabalho de descer as escadas e começar arrumar a padaria que abrirá umas duas horas depois. Sempre enquanto prepara o café para os clientes que ainda chegarão, é interrompido pelos funcionários que vão aparecendo e pedindo para o rapaz de vinte e poucos anos levantar o portão cinza que enfeita a calçada do bairro Merequendu.
A que chega um pouco mais tarde no posto de trabalho é Janaina. Estagiária de contabilidade, comemora com a mãe todos os dias as funções que vem aprendendo a fazer no escritório do Sr. Josué, que lhe assegurou pelo menos seis meses no cargo. A mãe da menina incentiva sempre os estudos da loirinha de cabelos curtos e insiste para a filha começar a faculdade sempre quando não está se queixando das dores que lhe incomodam há semanas.
Josué, o dono do escritório, é daqueles que começa o dia lamentando por tudo ter começado de novo. Viúvo, murmura aos quatro cantos a infelicidade de não ter tido tempo de ser pai enquanto era casado com a mulher que amou e que perdeu nos próprios braços.
Tem um pequeno escritório contábil no bairro Merequendu, que fica longe de onde mora, na zona leste. Sempre quando levanta pela manhã lê trechos dos inúmeros livros de Nietzsche que adornam a curvada prateleira em frente a cama. É sua motivação diária, apesar da controvérsia de alguém se motivar lendo Nietzsche. Motivação talvez não seja a palavra certa. O correto, segundo ele, é fortalecimento espiritual através da distopia e do pessimismo, sentimento que compartilha com o filósofo alemão.
Depois das doses homeopáticas de tristeza engolidas na leitura, enche a boca com duas bolachas integrais e corre para o trabalho. Todos os dias. O mesmo ritual.
Pega o ônibus que Miranda dirige com paciência a tantos anos e nunca notou a leveza do olhar do homem curvado em frente ao volante.
No trem, cruza os braços e encosta na porta enquanto a lataria chacoalha e ouve o som do atrito do vagão com os trilhos. Nunca lhe passou pela cabeça que algum ser humano estava dentro de uma cabine cuidando daquele troço de aço com mais de dez vagões.
Já bufando de raiva por ter pego de novo os transportes extremamente lotados e não ter conseguido se sentar por um minuto sequer, passa na padaria perto do escritório e pede um café. Um rapaz chamado Plínio sempre o atende com um sorriso contido e pergunta se é o "de sempre". Sem olhar para cima, confirma que sim e continua sem saber a cor dos olhos do atendente.
Corre para o escritório e acha centenas de papéis timbrados em cima da mesa. Foi Janaina - pensa rápido.
Pega o calhamaço e liga o computador. Minutos depois já está analisando os balancetes e as contas a pagar com a maior atenção. Em uma das mãos tem uma calculadora que já funciona de acordo com seus costumes, com cálculos e movimentos automáticos.
Não sente angústia alguma enquanto tem tudo ao seu alcance.
Já está na segunda página do relatório, enquanto Miranda está chegando no terminal de ônibus, Eliel contando as horas para ir embora e Plínio pensando no prato do dia que a padaria irá servir.
Janaina, no canto do escritório, olha o patrão tentando imaginar o caminho que o chefe fez até chegar ali. Com certeza deve ter conversado com muitas pessoas, imagina.
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